quinta-feira, outubro 20, 2011

Encontros e Desencontros no 6° Congresso Brasileiro de Missões

Por Thomaz Litz
Missionário da JUVEP no alto sertão paraibano, coordenador do Projeto Radical Sertão e professor na Escola de Missões Transculturais. É mestre em Missiologia (M.A.) e em Direito (LL.M.). Casado com Mayra com quem tem dois filhos (veja no site da Juvep - clique).

Nas 17 horas de viagem retornando do 6° Congresso Brasileiro de Missões em Caldas Novas / GO, com o tema “a missão transformadora diante da realidade mundial”, tive muito tempo para refletir.

1. A realidade mundial


Percebo que a realidade mundial, apesar de tema, quase não foi comentada no Congresso. Pouco se falou a respeito dos movimentos revolucionários do mundo árabe, especialmente no Norte da África e no Oriente Médio. Tampouco da crescente influência turca sobre a “primavera árabe”. Mesmo na palestra “a ação missionária e os sistemas totalitários”. Nada se comentou a respeito da secularização, da radicalização dos conflitos étnicos, do ressurgimento do nacionalismo e da crise financeira na Europa, com possibilidade real de dissolução da zona do euro. Mesmo na palestra “como tornar o Evangelho relevante num mundo secularizado”. Ninguém se lembrou do galopante desemprego nos Estados Unidos e dos problemas sociais resultantes, tais como moradores de rua e crescente mendicância. Mesmo nas palestras “projetos de ação social nas favelas dos grandes centros” e “inclusão social e a evangelização”. Passou despercebida a ascensão econômica e política da China e a dinâmica social na Ásia. Não se conversou sobre os outros emergentes (BRICS), especialmente Rússia, Índia (talvez com 70 milhões de cristãos), China (talvez com 100 milhões de cristãos) e África do Sul. Esqueceram-se dos mais dinâmicos movimentos missionários atuais, entre eles o fenômeno indiano (talvez 50.000 missionários transculturais), a força nigeriana, as contradições sul-coreanas (11.247 missionários transculturais), a simplicidade filipina (2.145 missionários transculturais), as surpresas vindas de Mianmar (1.953 missionários transculturais), Nepal (600 missionários transculturais) e Indonésia (421 missionários transculturais), o enigma chinês e egípcio.[1] Todos esses assuntos estão em pauta na arena mundial e são de profundo impacto na práxis missionária.

2. Diante da missão transformadora
Falamos, e muito, sobre a missão transformadora. Concordamos em fazer teologia de missões a partir de Gênesis 1, e não somente a partir do capítulo 3 do primeiro livro da Bíblia, ou até mesmo do Novo Testamento. Mas nesse afã integral de entender a palavra de Deus, misturamos mandato cultural com mandato missionário. Chegou-se a afirmar que “Deus fez primeiro ação social, depois evangelizou”[2], referindo-se à criação, obviamente anterior à pregação. Deixamos de ser holísticos, quando colocamos o social acima ou anterior à evangelização. Fica a pergunta: precisamos poupar o maior número de vidas através da ação social, para depois evangelizá-las? Ou precisamos viver o Evangelho em palavra e ação para o maior número de pessoas, poupando-as assim da morte física e espiritual? Ação social sem Evangelho é humanismo, não Missões. Tentou-se entender a missão diante dos impactos negativos no meio ambiente e a implicação do mandato cultural para a Igreja. Mas se perdeu a chance de reacender a chama missionária da igreja evangélica brasileira, quando se elegeu ecologia como tema central do Congresso. Não seria esse um tema da ética cristã, bem melhor inserida no próximo Encontro do RENAS (Rede Evangélica Nacional de Ação Social)? Falou-se muito, fez-se pouco. Toneladas de papel foram distribuídas aos congressistas, às vezes até contra sua vontade.

3. Faróis no oceano
Apesar de alguns desencantos, o 6° CBM também teve seus momentos de brilho. Buscou-se a unidade do corpo de Cristo com o lançamento da Aliança Evangélica. Ficamos tocados com a apresentação magistral sobre a vida missionária de Paulo feita por Hernandes Dias Lopes. Dois pastores e líderes indígenas, Henrique Terena e Eli Tikuna, nos abençoaram com sua integridade de vida e relatos sobre o avanço do CONPLEI (Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas). Aurivan Marinho, após discorrer com maestria sobre as falsas dicotomias entre teologia e missões, intelectualidade e piedade, dons e frutos do Espírito, espiritualidade e serviço, planejamento e direcionamento do Espírito, lembrou-nos que circunstâncias como fome, martírio e perseguição não podem determinar a agenda da igreja. Augustus Nicodemos apresentou a teologia da evangelização mundial de Paulo. Finalizando o Congresso, fomos chacoalhados por Ronaldo Lidório. Ainda existem no mundo 2.500 línguas sem tradução bíblica e 1.450 povos sem igreja autóctone. No Brasil, os oito maiores desafios missionários são: (1) as 121 etnias indígenas sem o Evangelho; (2) 10.000 comunidades ribeirinhas a serem alcançadas; (3) 700.000 ciganos da etnia calón sem escrita decifrada; (4) no mínimo 120 comunidades quilombolas sem o Evangelho; (5) inúmeros estrangeiros de países fechados ou de difícil acesso ao Evangelho vivendo no Brasil; (6) os ricos dos ricos, (7) os pobres dos pobres e (8) os excluídos vivendo às margens do Evangelho.[3]

4. Desvendando a neblina
Fazendo um balanço, o melhor do CBM não são as palestras. São os encontros e reencontros, a rede de contatos e as conversas de corredor. Num desses esbarrões no almoço recebi uma aula de missiologia por Bijoy Koshy, indiano, diretor da maior região geográfica da Missão Interseve (Américas e Pacífico Norte) e presidente da Associação de Missões da Índia, provavelmente a maior associação de missões do mundo. Conversamos sobre os movimentos missionários na Ásia e Brasil. A seguir algumas reflexões pessoais a partir desse interessante diálogo:

(1) O multiculturalismo brasileiro e a pluralidade evangélica normalmente são elencados como trunfos a favor do missionário brasileiro. No entanto, o denominacionalismo constrói muros intransponíveis e a competição entre agências missionárias muitas vezes impede parcerias amplas e solidárias.

(2) O viés prático do movimento missionário brasileiro é uma de suas marcas. Porém, corre-se o risco do pragmatismo metodológico. Métodos tornam-se mais importantes do que princípios, meios mais valorizados do que fins.

(3) A crescente reflexão acadêmica do movimento missionário brasileiro sobre si mesmo é perceptível. No entanto, grande parte dela ainda é feita por missionários de origem estrangeira, mesmo que os consideramos “patrimônio nacional”. Quando feita por brasileiros, boa parte da literatura missionária sai das penas de pastores à frente de grandes igrejas nos megacentros urbanos, muitos sem vivência pessoal no campo missionário transcultural. Poucos missionários brasileiros com experiência transcultural publicam livros missiológicos. Boa parte deles receberam sua formação em mestrados e doutorados norte-americanos. Fica patente: ainda somos intelectualmente dependentes do exterior. Missionários de origem estrangeira e pastores de grandes centros urbanos podem e devem refletir sobre missões. Mas o missionário brasileiro precisa refletir sua experiência missionária própria, através de formação acadêmica adequada, incentivos financeiros, tempo para estudo e ambiente reflexivo.

(4) Uma vasta experiência no contexto religioso do catolicismo popular, ou pelo menos no contexto cristão secularizado, é a nossa marca. No entanto, pouca familiaridade temos com as três maiores religiões não-cristãs do mundo: budismo, hinduísmo e islamismo. Exatamente estas são majoritárias no continente mais populoso e menos alcançado do planeta. Na Ásia, somente 8,6% das pessoas consideram-se cristãs, enquanto 91,4% seguem outras religiões e 60% das etnias são considerados não-alcançados (2.545 na Índia, 520 na China e outras tantas no Paquistão, Nepal e Bangladesh).

(5) Graças à democracia, ao avanço institucional e à estabilidade econômica, vivemos um período de paz e prosperidade financeira. Avança também o individualismo, consumismo e hedonismo. Destarte, em termos gerais, o movimento missionário brasileiro tem pouca experiência com perseguições por parte de grupos religiosos ou governos. Metodologias missionárias testadas na democracia com fundo cristão não são eficazes em países de difícil acesso ou fechados ao Evangelho. Resultado: temos pouca criatividade no acesso a países fechados e pouca flexibilidade na adoção de novas metodologias, por exemplo “business as transformation”, “business as mission” e “insider movements”.

(6) Nossa geografia gera um distanciamento natural em relação aos grandes e dinâmicos movimentos missionários da Ásia e África. Tanto é que durante o 6° CBM, pouquíssimos representantes de outros países emergentes estavam presentes.

Por conta dessas nossas características, realidades e contradições, o movimento missionário brasileiro continua concentrado nos países da América Latina, da Península Ibérica, nas ex-colônias portuguesas da África (Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde) e Ásia (Timor Leste). Precisamos de um esforço consciente para quebrar as barreiras geográficas (isolamento), lingüísticas (português e espanhol), religiosas (animismo e catolicismo), denominacionais (individualismo e competição), metodológicas (pragmatismo) e intelectuais (dependência anglo-saxão) do movimento missionário brasileiro, a fim de chegar aos países mais populosos e com as etnias menos alcançadas da Ásia. Para tanto, o Congresso Brasileiro de Missões pode continuar sendo um valioso instrumento, desde que não perca o foco – o Evangelho todo, a todo homem e ao homem todo.


[1]Números apresentados por Bijoy Koshi, “Novos Paradigmas de atuação missionária na Ásia”, 6° Congresso Brasileiro de Missões, anotações pessoais.
[2]Ariovaldo Ramos, “A Missão Integral e a Ética da Manutenção”, 6° Congresso Brasileiro de Missões, anotações pessoais.
[3]Ronaldo Lidório, „O Evangelho: princípios, práticas e contextualização”, 6° Congresso Brasileiro de Missões, anotações pessoais.

2 comentários:

  1. Louvo a Deus pela Vida do Pr. Thomaz que com sua vivencia ministerial pôde extrair o que de bom se passou no 6CBM. Para mim este texto serviu tao bem como se eu estive la presente.

    ResponderExcluir
  2. muito bom o seu texto, como obreiro brasileiro na Ásia, concordo com as conclusões em gênero, número e grau, poderia repassar o seu texto à amigos aqui na Ásia? Um abraço

    ResponderExcluir