sábado, outubro 15, 2011

O silêncio de quem sofre (Salmo 62)

Por Thomas Tronco

O marquês de Condorcet contou, certa vez, que o grande matemático e físico Leonhard Paul Euler (1707-1783) viveu em São Petersburgo nos dias do tirânico domínio da imperatriz Anna. Quando ele teve a oportunidade de se mudar para a Alemanha, a pedido do rei da Prússia, a rainha-mãe o procurou desejosa de conversar com o famoso estudioso. Contudo, Euler não se mostrou uma pessoa de muitas palavras. Suas respostas monossilábicas acabaram incomodando a rainha, fazendo-a criticar sua timidez e indagar-lhe: “Por que não queres me falar?”. Diante disso, o matemático explicou a razão do seu silêncio: “Eu vim de um lugar onde, se um homem diz uma palavra, ele é enforcado. Pessoas quietas e pacíficas raramente vêm a sofrer danos ou causar danos”.
 
Esse triste relato nos leva à reflexão sobre os tipos de reação à tirania e à perseguição. Um modo de reagir é, em meio à revolta, esbravejar contra a injustiça e gritar, aos quatro ventos, as razões do sofrimento, exigindo mudanças e alívio. Os livros de história estão cheios de capítulos heróicos que narram atitudes como essa que serviram de prelúdio ou de motivação para transformações sociais e políticas. Mas, também, há um grande vácuo no qual pessoas poderiam ter feito diferença e não fizeram, simplesmente porque, manifestando-se contra a injustiça, tiveram suas vidas ceifadas muito cedo. Por outro lado, um modo de agir, diferente do primeiro, é suportar o sofrimento em silêncio para não fazer algo que produza maiores consequências e pesares.

Davi viveu situações em que lançou mão do segundo tipo de reação a fim de depender totalmente do Senhor. Uma dessas situações surge como pano de fundo do Salmo 62. Nele, Davi se dirige aos seus inimigos nos seguintes termos (v.3): “Até quando arremetereis vós contra um homem?” (‘ad-’anâ tehôtetû ‘al ’îsh). Essa é uma declaração de quem está no limite, com a paciência e a disposição de administrar o sofrimento chegando ao fim. Não é para menos. A perseguição estava intensa e prestes a causar a ruína completa do salmista: “Todos vós sois assassinos tal qual uma parede que cai, um muro a ponto de ruir” (teratsehû kullekem keqîr natûy gader haddehûyâ). Davi quer dizer que seus perseguidores eram tão perigosos, em seu intento de matá-lo, quanto os riscos de morte em um desabamento que deixa soterradas as suas vítimas.

Utilizando-se ainda da figura do desabamento, Davi fala da dedicação integral dos inimigos para prejudicar seu nome e sua honrosa posição (v.4): “Eles ficam conspirando para derrubá-lo da sua condição digna” (’ak misse’etô ya‘atsû lehaddîah). A ideia de conspirar ou de ficar planejando a derrocada do salmista mostra que essa não é uma perseguição aberta ou de caráter militar. Também não se trata de inimigos externos, mas de gente próxima que mantém uma postura falsa, já que “eles se comprazem na falsidade”. Sendo assim, a aparência desses homens perigosos e hipócritas, diante de Davi, era de pessoas de bem, amigos do salmista. Porém, na verdade, de forma diametralmente oposta, eles nutriam ódio e aguardavam a oportunidade de atacar, visto que “com sua boca eles bendizem, mas no seu íntimo eles amaldiçoam” (bepîw yebarekû ûbeqirbam yeqallû).

Diante dessa descrição, podemos perguntar: “Já que Davi sabia das tramas e do ódio dos inimigos, por que, então, ele não tomava providências quanto a isso?”. Como o salmo é dirigido a Jedutum, a quem Davi instituiu como cantor e instrumentista a fim de louvar a Deus (1Cr 16.41; 25.6; 2Cr 35.15), é certo que ele foi escrito quando o salmista era rei sobre todo o Israel. Logo, tendo poder real, por que Davi não deu cabo dos traidores? Não sabemos o porquê. Talvez, envolvesse pessoas na nobreza, de modo que a solução poderia gerar uma crise política. Ou, talvez, o inimigo fosse da sua própria casa e Davi não quisesse punir a quem amava. Seria o caso de Absalão que, por quatro anos (2Sm 15.7 cf. vv.1-6), trabalhou para ganhar a simpatia do povo e gerar descontentamento com relação ao rei (2Sm 15.1-6) – algo que era impossível fazer sem que o rei soubesse. Mas, sendo filho do próprio salmista, isso explicaria a falta de providências duras do rei e a ausência de um clamor a Deus pela ruína dos adversários, como ocorre em outros salmos. Finalmente, é também possível que Davi soubesse da existência de oposição, mas não identificasse, exatamente, quem eram os opositores.

Assim, sem poder resolver por si a situação, o rei lança mão de um recurso legítimo: esperar em Deus. Essa declaração, com pequenas diferenças no texto hebraico, Davi faz duas vezes (vv.2,3 e vv.5,6). Em primeiro lugar, surge o alvo da confiança: o Senhor. Ele diz (v.2): “Somente por Deus minha alma se aquieta” (’ak ’el-’elohîm dûmîyâ nafshî). Se alguém podia dar paz ou calma a Davi em uma situação tão terrível como aquela, esse alguém não era ele mesmo. Na verdade, só um poderia produzir paz em meio à guerra: o próprio Senhor. Assim, Davi não confia no seu cargo real, nem na sua guarda pessoal, nem tampouco em recursos questionáveis. O alvo da sua confiança é o Deus bondoso e soberano.

Contudo, essa confiança não existe a despeito dos sentimentos do salmista. Ela interfere completamente no modo como Davi se comporta enquanto espera em Deus. Assim, o texto nos revela o modo da confiança: a paz (v.2). O mesmo texto que traduzimos acima, se tomado de modo literal, significa: “Somente em Deus há silêncio para minha alma”. A palavra “silêncio” (dûmîyâ) também significa “descanso”, “quietude” e “repouso”. Ela aponta para o fato de Davi ter deixado de lado o desespero que leva a ações impensadas e extremas. Em lugar disso, confiante em Deus, Davi permanecia quieto a fim de não provocar outros problemas, nem desagradar o Senhor.

Essa forma de proceder não se devia à covardia de agir ou à tolice do rei. Ela se baseava em algo real e superior à lógica humana. O próprio Davi apresenta a razão da confiança: a proteção de Deus (v.2): “A minha salvação vem dele” (mimmennû yeshû‘atî). Diferente do que críticos do cristianismo afirmam, Deus não é o ópio do povo. A figura do Senhor não produz uma falsa sensação de segurança. Deus se relaciona com seus servos e, de fato, olha para suas necessidades a fim de atendê-las. Isso não significa sempre ausência de problemas, mas, também, conforto, proteção e firmeza nas angústias (v.3): “Somente ele é a minha rocha e a minha salvação” (’ak-hû’ tsûrî wîshû‘atî). Para completar a figura, Davi introduz a imagem de uma guerra e um cerco militar para dizer que Deus é, para ele, como aquelas fortalezas dentro das cidades fortificadas, mais altas que as próprias muralhas: “Meu alto refúgio” (mishgavvî). O resultado dessa certeza se vê na declaração final: “Eu não serei abalado” (lo’-’emmôt). Um modo paralelo e enfático de dizer tudo isso é (v.7): “De Deus vem a minha segurança e a minha honra. A minha rocha forte e o meu refúgio estão em Deus” (‘al-’elohîm yish‘î ûkevôdî tsûr-‘uzzî mahsî be’lohîm).
Essa é uma esperança tão gloriosa que Davi não a guarda para si. Ele compartilha com seus súditos, dizendo (v.8): “Confiem nele em todo tempo, ó povo. Lancem diante dele seus corações. Deus é o nosso refúgio” (bithû bô becol-‘et ‘am shifkû-lepanayw levavkem ’elohîm mahaseh-lanû). Não há como deixar de perceber que a esperança de Davi no Deus a quem chama “meu refúgio”, é, também, a esperança de todos os servos do Senhor, os quais devem chamá-lo “nosso refúgio”. 

Se antepondo à primeira instrução (“confiai nele”), Davi os informa sobre as fontes nas quais não há segurança, fazendo-o na forma de outra instrução, mas uma instrução sobre o que não fazer (v.10): “Não confiem na exploração, nem na opressão. Não se iludam com a riqueza quando ela aumentar. Não ponham nela o coração” (’al-tivtehû be‘osheq ûbegazel ’al-tehbalû hayil kî-yanûv ’al-tashîtû lev). Visto que essa mensagem é dirigida a todos, tanto plebeus como os de fina estirpe (cf. v.9), Davi mostra que nem a riqueza nem o poder dos ricos podem assegurá-los como o Senhor. A lição é clara e marcante: “Todos” devem confiar no Senhor e pôr “nele” o coração. E, ao fazê-lo, manter o controle das ações, de modo calmo e pacífico, por causa da verdadeira e viva esperança.

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