domingo, outubro 03, 2010

Dom de Línguas - um ponto de vista

A texto abaixo foi escrito por Reinaldo Bui. Este é seu ponto de vista quanto ao dom de línguas.

O dom de línguas na igreja de Corinto


Introdução

Quando nos deportamos para os capítulos 12 – 14 de I Coríntios, deparamos com um problema, que talvez seja a mais nebulosa especulação acerca dos dons espirituais produzida na igreja primitiva, e que o apóstolo Paulo precisava tratar.

Mas qual era a real extensão deste problema? Não sabemos como ele foi exposto aos ouvidos do apóstolo, nem a exata situação presente dentro daquele ajuntamento corintiano. O que sabemos, sabemos apenas pelas conclusões das pistas que Paulo deixou em sua carta. Talvez pudéssemos descrever o problema da seguinte maneira: Durante os cultos, os crentes de Corinto estavam pronunciando palavras ininteligíveis atribuindo-as a um dom especial oriundo do Espírito Santo.

Como todo bom juiz, antes de julgarmos o caso, deveríamos considerar ou analisar o contexto da situação da forma mais ampla possível.


O pentecostes em Atos

Todos ficaram cheios do Espírito Santo e passaram a falar em outras línguas (heteros glossa), segundo o Espírito lhes concedia que falassem. Ora, estavam habitando em Jerusalém judeus, homens piedosos, vindos de todas as nações debaixo do céu. Quando, pois, se fez ouvir aquela voz, afluiu a multidão, que se possuiu de perplexidade, porquanto cada um os ouvia falar na sua própria língua (dialektos). Estavam, pois, atônitos e se admiravam, dizendo: Vede! Não são, porventura, galileus todos esses que aí estão falando? E como os ouvimos falar, cada um em nossa própria língua (dialektos) materna? Somos partos, medos, elamitas e os naturais da Mesopotâmia, Judéia, Capadócia, Ponto e Ásia, da Frígia, da Panfília, do Egito e das regiões da Líbia, nas imediações de Cirene, e romanos que aqui residem, tanto judeus como prosélitos, cretenses e arábios. Como os ouvimos falar em nossas próprias línguas (glossa) as grandezas de Deus? Todos, atônitos e perplexos, interpelavam uns aos outros: Que quer isto dizer? Outros, porém, zombando, diziam: Estão embriagados! (Atos 2:4 a 13)

Lucas utiliza duas palavras para descrever este fenômeno, ambas traduzidas para o português por língua. A primeira é a palavra grega dialektos, a mesma que no português usamos para definir a linguagem peculiar de um povo. Por exemplo:

Obtida a permissão, Paulo, em pé na escada, fez com a mão sinal ao povo. Fez-se grande silêncio, e ele falou em língua hebraica... (Atos 21:40)

E, caindo todos nós por terra, ouvi uma voz que me falava em língua hebraica: Saulo, Saulo, por que me persegues? Dura coisa é recalcitrares contra os aguilhões. (Atos 26:14)

Nestes dois casos a palavra “língua” foi traduzida do grego dialektos. Só encontramos esta palavra seis vezes em todo o NT, sendo Lucas o único escritor que a utiliza e apenas no livro de Atos.

A segunda é a palavra glossa. Ela aparece cerca de 50 vezes no NT e, como no português, pode ser empregada tanto para se referir a um membro do nosso corpo, o órgão responsável pela nossa fala...

Jesus, tirando-o da multidão, à parte, pôs-lhe os dedos nos ouvidos e lhe tocou a língua
com saliva... (Marcos 7:33)

Assim, também a língua, pequeno órgão, se gaba de grandes coisas. Vede como uma fagulha põe em brasas tão grande selva! (Tiago 3:5)

...Como também para definir uma linguagem ou dialeto usado por povos de outras nações:

... e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai. (Filipenses 2:11)

...e entoavam novo cântico, dizendo: Digno és de tomar o livro e de abrir-lhe os selos, porque foste morto e com o teu sangue compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação... (Apocalipse 5:9)

Mas o importante é notarmos alguns detalhes deste acontecimento de Atos 2:
a. Encontrava-se em Jerusalém gente de várias nações. Praticamente haviam representantes oriundos de todo o mundo antigo conhecido;
b. Os apóstolos falavam de tal maneira que cada estrangeiro compreendia na sua própria língua materna (no seu próprio dialeto);
c. Não havia necessidade de intérprete;
d. Alguns homens acharam que os apóstolos estavam embriagados, pois não conseguiam entender o que estes falavam. Creio que tais homens foram impedidos pelo Espírito Santo de compreenderem aquela língua;
e. Este sinal marcou a descida do Espírito Santo;
f. Este sinal foi para os incrédulos, conforme o apóstolo Paulo confirma em I Co 14:22. Estes ficaram maravilhados com o acontecimento, pois se tratava de algo absolutamente inédito.


A igreja de Corinto

Vamos entender um pouco mais o contexto das pessoas para quem Paulo escreveu esta carta. Nos capítulos dois e três, vemos uma igreja marcada por inveja, ciúmes, arrogância e divisão. No capítulo cinco descobrimos que há um promíscuo na igreja. No capítulo seis vemos um crente dando calote no outro. Há ainda indícios de que alguns crentes daquela comunidade participavam do culto a Afrodite (iam ao templo daquela deusa onde mantinham relações sexuais com as sacerdotisas daquela deusa como forma de culto). No capítulo sete algumas mulheres crentes questionam se deviam manter relações sexuais com seus maridos descrentes.No capítulo dez, percebemos que alguns crentes comiam animais sacrificados a ídolos. No capítulo onze, descobrimos que eles haviam transformado a Ceia do Senhor numa disputa, provocando divisão, na qual pessoas com mais dinheiro chegavam mais cedo, tomavam aquela refeição sem os escravos, que chegavam depois e não encontravam mais nada. Alguns deles chegavam a se embriagar na Ceia. Nos capítulos doze, treze e catorze, percebemos que o culto deles era uma confusão. E no capítulo quinze, ficamos sabendo que eles chegaram até a questionar se Jesus de fato havia ressuscitado.

Diante desta conduta tão imprópria, podemos afirmar que esta era um igreja "separada", que fazia parte do Corpo de Cristo? O apóstolo Paulo tinha consciência que sim, conforme ele afirma logo na introdução da sua carta:

...à igreja de Deus que está em Corinto, aos santificados em Cristo Jesus, chamados para ser santos, com todos os que em todo lugar invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso (ICo 1:2).

Há duas verdades que precisamos compreender neste versículo. Vemos aqui duas palavras que parecem ter o mesmo significado, mas quando analisamos melhor, percebemos que são diferentes: aquela igreja foi santificada e chamada para ser santa. A primeira expressão diz respeito a um tempo passado, em que ela foi santificada; e a segunda, que aponta para o futuro, fala que há um propósito a ser cumprido – a igreja deve ser santa. Apesar disto, Paulo bem sabia da condição espiritual dos membros da igreja de Corinto:

Eu, porém, irmãos, não vos pude falar como a espirituais, e sim como a carnais, como a crianças em Cristo. Leite vos dei a beber, não vos dei alimento sólido; porque ainda não podíeis suportá-lo. Nem ainda agora podeis, porque ainda sois carnais. (ICo 3:1,2)

Diante do quadro já visto a respeito da cidade de Corinto e do povo que nela habita, gostaríamos de frisar alguns pontos essenciais.

a. Corinto era uma cidade portuária. Apesar de ser frequentada por gente de várias nacionalidades, portanto falantes de vários dialektos diferentes, a língua oficialmente falada naquela igreja era o grego;
b. Fica explícito na carta que aquela igreja era formada por crentes "carnais", e que ainda não haviam atingido nem um mínimo de maturidade espiritual desejada;
c. Paulo fora informado dos problemas da igreja através do relato de terceiros;
d. Ao que tudo indica, Paulo não presenciara nenhum culto onde tivessem ocorrido tais manifestações, portanto teria surgido depois da sua partida;
e. A insistência de Paulo era para que não dessem tanta importância a este tipo de manifestação, mas que buscassem dons superiores.

Além do mais, sabemos que desde tempos remotos "êxtases" emocionais podem levar pessoas a falarem de maneiras incompreensíveis, podendo, dentro de um contexto religioso, causar uma certa dúvida a respeito da fonte deste tipo de manifestação. Sabemos ainda, que por sua vez, tais manifestações não são exclusivas do cristianismo:
“Pítia (chamada prophetis) era originalmente uma, duas ou três moças (mas posteriormente velhas) tiradas da população local que, sentada num tripé em cima de uma cavidade na terra, fazia emergir um “espírito oracular” (pneuma mantikon) na forma de fumaça, dando-lhe a inspiração. Esta aumentava quando ela mastigava folhas de louro (a planta de Apolo). Como resultado, irrompia em sons inarticulados enigmáticos, semelhantes à glossolalia. Estes diziam respeito aos eventos futuros e tinham conexão direta com a pessoa que consultava o oráculo, e que vinha a ele por causa de um problema que a deixava confusa, acerca do qual procurava ajuda na forma de instrução. Visto que a resposta da Pítia usualmente era incompreensível para o visitante, havia necessidade de outros oficiais no santuário, cuja tarefa era traduzir a expressão vocal em dito que pudesse ser entendido com clareza e lembrado.” (The Delphic Oracle, 1956)

O Apóstolo Paulo

O que se passava na mente do apóstolo enquanto a ele relatava o comportamento da igreja corintiana? Como ele analisava o “falar em línguas” entre os coríntios segundo seus conceitos de linguística? O que ele pensava quando ouvia falar a palavra glossa? Qual a ligação com dialektos? Ou qual era o seu conceito de logos? Por que ele usou esta palavra em sua advertência? Não podemos de modo algum desconsiderar a criação deste apóstolo...

Irmãos e pais, ouvi, agora, a minha defesa perante vós. Quando ouviram que lhes falava em língua hebraica, guardaram ainda maior silêncio. E continuou: Eu sou judeu, nasci em Tarso da Cilícia, mas criei-me nesta cidade e aqui fui instruído aos pés de Gamaliel, segundo a exatidão da lei de nossos antepassados, sendo zeloso para com Deus, assim como todos vós o sois no dia de hoje. (At 22:1-3)

Bem que eu poderia confiar também na carne. Se qualquer outro pensa que pode confiar na carne, eu ainda mais: circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei, fariseu, quanto ao zelo, perseguidor da igreja; quanto à justiça que há na lei, irrepreensível. ( Fp 3:4-6)

... jamais esquecer sua intelectualidade...

Por isso, dissertava na sinagoga entre os judeus e os gentios piedosos; também na praça, todos os dias, entre os que se encontravam ali. E alguns dos filósofos epicureus e estóicos contendiam com ele (...) Então, tomando-o consigo, o levaram ao Areópago, dizendo: Poderemos saber que nova doutrina é essa que ensinas? (At 17:16-19)

Dou graças a Deus, porque falo em outras línguas mais do que todos vós. (I Co 14:18)

Com toda certeza, Paulo era um poliglota, e provavelmente é a isto que ele está se referindo neste versículo. Além disto, não podemos subestimar sua capacidade ao analisar o problema de “línguas” em Corinto. Nunca como sendo mera casualidade, pois certamente havia muitos conceitos a serem considerados diante do fato. Há muitas implicações por trás desta problemática linguística.

Seu histórico judaico
Primeiramente, creio que o apóstolo se reportava a dois acontecimentos importantes do AT envolvendo línguas: Édem e Babel. É conveniente lembrar que vários atos linguísticos de Deus tiveram como resultado a criação do mundo. No princípio era o logos..., diz o evangelho de João, e Gênesis mostra que era mesmo, no princípio, o verbo, e que através do verbo Deus criou o mundo nomeando toda a sua criação: as trevas chamou "noite", à luz chamou "dia", e assim por diante. Portanto, Deus criou ao nomear; e em seguida continuou o trabalho de nomeação através de Adão. As coisas passam a ter um nome. Adão comunicava-se com Deus através da língua, e a língua de Deus era a língua que comunicava, que traduzia e que exprimia a essência das coisas, e do seu ser.

Uma vez consumada a queda, a língua única continuou sendo praticada, apesar da expulsão do Édem, e apesar desta maldição, ainda assim os descendentes de Adão continuaram falando a língua de Deus, até o acontecimento de Babel. Talvez a raiz da palavra (provavelmente seja balil), tem o objetivo de relacionar o nome próprio com a idéia de confusão, ainda que por ironia, num jogo de palavras que alude o que aconteceu quando as línguas foram confundidas. Deus resolveu castigar toda a arrogância do homem, privando-o justamente daquilo que consistia a sua força, que tinha permitido aos homens desafiar a Deus: a sua unidade linguística. A partir de Babel os homens se dispersaram e começou, então, o grande exílio humano. Foi o início do pluralismo linguístico. Certamente esta história fora inculcada no apóstolo Paulo desde os tenros tempos de sua infância...

Além da história, segundo O. Procksch, o pensamento hebraico sustentava que “a PALAVRA aparece como uma força material que está sempre presente”. Na mente hebraica, a palavra e a faculdade da fala humana são consideradas milagres especiais da criação divina (1 QH 1:28-29). Isto não é um dom de Deus?

A influência helenística
Não obstante suas raízes judaicas, Paulo devia ser profundo conhecedor da filosofia e linguística grega. Paulo sabia que o falar tinha um significado muito mais nobre que um simples balbuciar de sons. Sabia que cada palavra proferida pela nossa língua traz consigo um conceito muito mais profundo do que muitas vezes imaginamos. Ele sabia diferenciar rhema (que usualmente diz respeito a palavras e sons individuais) de logos (algo que já existia antes mesmo de ser expressado: é racional e inteligível).

Segundo Heráclito (500 a.C.), "logos é o instrumento do pensamento que expressava tanto o pensamento e sua conclusão, bem como as suas conseqüências para o pensador". É digno de nota que ele tinha em sua mente o campo total do significado em cada uso individual das palavras, e isto expressa, de certa forma, a mente grega quanto ao seu modo de pensar e analisar o mundo. Esta era a definição grega de logos, e não foi por acaso que o apóstolo introduziu esta “palavra” em sua apologia:

Assim, vós, se, com a língua, não disserdes palavra (logos) compreensível, como se entenderá o que dizeis? Porque estareis como se falásseis ao ar.

Contudo, prefiro falar na igreja cinco palavras com o meu entendimento, para instruir outros, a falar dez mil palavras em outra língua.

Porventura, a palavra de Deus se originou no meio de vós ou veio ela exclusivamente para vós outros? (1 Coríntios 14:9, 19, 36)

Mais do que mero som, uma “palavra” era, para o apóstolo Paulo, um meio de ordenar fenômenos e ideias, era a ponte pela qual o homem entrava em relacionamento intelectual com o mundo. Logos não denotava meramente uma coisa, mas a representava amplamente. Logos era dotada de vida e poder (dynamis), pois assim fora determinado por Deus. Esta foi a palavra escolhida por João para descrever Jesus, pois exprimia exatamente a ideia que o evangelista queria demonstrar.

Sua experiência cristã
Decerto que, por causa da sua formação, o apóstolo trazia toda esta bagagem em sua mente. Mas além destes conceitos, existia ainda um terceiro fator que deveria pesar em suas considerações, que é também um ponto de união entre Éden e Babel: o derramamento do Espírito sobre os apóstolos na festa de Pentecostes em Jerusalém.

Teologia da linguística. O Espírito Santo não aboliu as línguas particulares (dialektos), mas deu-lhes uma dignidade eminente, pois foi nas línguas particulares que os apóstolos pregaram a mensagem de Deus. Só que com uma particularidade sobrenatural: esta mensagem tornou-se, ao mesmo tempo, uma mensagem universalmente compreensível. Deus mostrou com este milagre que Ele reconhece a realidade da dispersão causada em Babel, mas mostra que o caos linguístico não é uma barreira. O Espírito Santo não quer restaurar a língua do Édem, porque sua perda se tornou irreversível desde Babel, mas não quer que Babel se transforme numa punição eterna, que impeça os homens de compreenderem a Palavra do Senhor.

Talvez Paulo compreendesse que este acontecimento era coerente com a obra de Cristo na cruz, em que a Encarnação do logos é a forma de corrigir os efeitos da queda, sem com isso considerar nulo o fato histórico do pecado original.

A avaliação de Paulo
De um lado, Paulo vislumbra tão grande maravilha que progressivamente fora revelada por Deus em séculos de história, utilizando-se das mais diversas culturas que aquela dispersão babélica acabou por provocar, sendo ele próprio uma testemunha do clímax destes acontecimentos na “plenitude dos tempos” - a Encarnação do Verbo Divino, confirmado através do derramamento do Santo Espírito de Deus no dia do Pentecostes. De outro o apóstolo depara-se agora com uma tentativa humana e grosseira de imitar tal acontecimento, por parte de um grupo de neófitos que sequer conseguiram se livrar dos mais vis desejos embutidos em suas paixões carnais... 

O que fazer diante desta situação? Como Paulo combateria tamanho equívoco? Vemos o apóstolo comparando, de maneira muito sutil, o espetáculo corintiano a um sino de bronze que soa, um címbalo que retine..., ou pior, a um instrumento inanimado que não emite seus sons bem distintos a ponto de não se distinguir o que esta sendo tocado; ou ainda ironizando: há alguém que interprete isso?

Análise do capítulo

Temos por certo que a expectativa de Paulo para com a igreja de Corinto era a mesma que ele tinha para com a de Tessalônica:

Eu quisera que vós todos falásseis em línguas; muito mais, porém, que profetizásseis; pois quem profetiza é superior ao que fala em línguas, salvo se as interpretar, para que a igreja receba edificação. (1 Co 14:5)

...e o Senhor vos faça crescer e aumentar no amor uns para com os outros e para com todos, como também nós para convosco... (1 Ts 3:12)

e tantas quantas tivesse fundado. Por isso Paulo insiste tanto para que os coríntios dessem preferência: (i) ao amor, e (ii) ao dom de profetizar ao invés de procurar falar em línguas.

Segui o amor e procurai, com zelo, os dons espirituais, mas principalmente que profetizeis. (1 Co 14:1)

Mas o que significa profetizar? Este verbo, que aparece 28 vezes no NT, tem o sentido básico de “proclamar revelação divina” (e.g. Mt 7:22), e pode ser entendido no sentido ético e paraclético de “consolar, exortar, ensinar” conforme se apresenta em sua carta::

Mas o que profetiza fala aos homens, edificando, exortando e consolando.

Porque todos podereis profetizar, um após outro, para todos aprenderem e serem consolados. (I Co 14:3 e 31)

Não se tratava, porém, daquele tipo de profecia tão comum no Antigo Testamento na qual ele faz menção no verso 21:

Na lei está escrito: Falarei a este povo por homens de outras línguas (heteroglossos) e por lábios de outros povos, e nem assim me ouvirão, diz o Senhor. (1 Co 14:21)

Paulo cita oportunamente o profeta Isaías. Refere-se àquela profecia feita cerca de 750 anos antes, onde o contexto imediato era a iminente invasão assíria que dizimaria Israel por causa da sua desobediência. Contextualizando-a para a sua realidade, o apóstolo interpreta-a como sendo os gentios, donos de outras línguas, os portadores das boas-novas, uma vez que os judeus rejeitaram a Jesus. Apesar dos coríntios (também) estarem contidos dentro desta profecia, as manifestações de glossolalia dentro do culto estavam longe de ser seu cumprimento literal, pois estas mais confundiam do que esclareciam:

Se, pois, toda a igreja se reunir no mesmo lugar, e todos se puserem a falar em línguas, no caso de entrarem indoutos ou incrédulos, não dirão, porventura, que estais loucos? (1 Co 14:23)

Promover o amor, edificar a igreja, esclarecer quanto aos dons, estabelecer ordem no culto. Diante deste cenário, o apóstolo Paulo tinha um desafio. Precisava tratar o problema com a precisão e a habilidade de um mestre, pois havia ainda a preocupação de não coibir o trabalho (autêntico) do Espírito Santo.

Portanto, meus irmãos, procurai com zelo o dom de profetizar e não proibais o falar em línguas. (1 Co 14:39)

E, pela graça de Deus, podemos ver hoje que Paulo expõe, e não impõe, sua apologia com muita sabedoria. Ele consegue comunicar que a busca irracional por algum tipo de manifestação sensacionalista, não acrescentaria absolutamente nada àquela igreja.

Agora, porém, irmãos, se eu for ter convosco falando em línguas, em que vos aproveitarei, se vos não falar por meio de revelação, ou de ciência, ou de profecia, ou de doutrina? (1 Co 14:6)

O dom de línguas hoje

O movimento pentecostal contemporâneo veio com uma proposta de tentar resgatar as características da igreja primitiva, tentando identificar-se com os acontecimentos do Pentecostes de 2000 anos atrás. Buscaram, equivocadamente, alguma forma visível de manifestação para autenticar este movimento, assim como os coríntios o fizeram. 

Ricardo Gondim, pastor e teólogo pentecostal, analisa com certo desapontamento os resultados desta manifestação cem anos depois do seu surgimento:

Acredito que o fenômeno das línguas estranhas explique alguma coisa. A princípio criticado por tirar as pessoas do pleno controle de suas faculdades, o falar em línguas estranhas (glossolalia) serviu para atrair milhões. A experiência de falar em uma língua desconhecida vem de John Wesley, que ensinou que a santificação dos crentes acontece em uma segunda experiência. Assim, quando os cultos da rua Azuza, em Los Angeles, se tornaram notórios, essa segunda experiência não se restringiu à santificação; o êxtase veio acompanhado de línguas para capacitar na tarefa de evangelizar o mundo. Os crentes poderiam evangelizar as nações, sem precisar aprender idiomas; Deus habilitaria o missionário para pregar e ser compreendido. Os dois capítulos iniciais de Atos foram invocados como base. Assim, os pentecostais, desavergonhados, assumiram o falar palavras ininteligíveis como marca distintiva do movimento. O pentecostalismo nasceu, portanto, da euforia missionária do início do século 20, que esperava o arrebatamento da igreja. Era necessário “apressar” a volta de Cristo evangelizando os confins da terra. Assim, enquanto as escolas tradicionais gastavam anos no preparo de evangelistas, o forno aquecido da reunião de oração pentecostal despachava milhares de pregadores leigos. Voluntários certos da capacitação extraordinária que receberam estavam dispostos a se embrenharem nos lugares esquecidos do planeta. Enquanto fundamentalistas ressaltavam a necessidade de conhecer os idiomas originais da Bíblia para uma interpretação acurada, homens e mulheres semi-analfabetos afirmavam ter adquirido capacitação espiritual de não apenas entender as Escrituras, como também de proclamá-la além-mar. Depois, os próprios pentecostais perceberam que a glossolalia não ajudava na comunicação do evangelho. Porém, para não abandonar a idéia de que o falar em línguas era um dom de poder, passaram a ensinar que o dom sinalizava o poder que reveste os crentes para serem mais eficazes em suas ações. Mais tarde, com o movimento de renovação entre protestantes tradicionais e católicos, línguas estranhas ganharam outro significado: comunicação íntima com Deus para a edificação do crente. À medida que a doutrina se sofisticou, passou-se a considerar dois tipos de língua estranha: como sinal inicial do batismo no Espírito Santo e como variedade de línguas, para enriquecer a vida devocional. Fui batizado no Espírito Santo em uma reunião de oração na Assembleia de Deus de Fortaleza, em 1974. Falei em línguas em um êxtase que jamais esqueci. Dali, senti-me impulsionado a pregar. Como os primeiros negros americanos, parti para fazer missões, certo que Deus me revestira de seu poder. Infelizmente, observo que o dom de línguas perdeu valor e sentido entre os pentecostais. 

Vale a crítica de que no pentecostalismo alguns se consideram privilegiados e menosprezam os que não falam em línguas, considerando-os menos especiais. Também, o movimento exagerou na individualidade do dom de línguas, que já não mobiliza para missões como em tempos passados. Evangelistas gostam de entrecortar suas pregações com glossolalia para se exibirem como ungidos. Atualmente, neopentecostais dão curso para ensinar línguas estranhas, com técnica e tudo mais.

Surge a seguinte pergunta: acabou, então, o dom de línguas nos dias de hoje? Que valor tem os testemunhos de homens sinceros que relatam uma experiência com línguas estranhas? Consideremos o seguinte:

Em primeiro lugar, este dom aconteceu em um momento especial (Atos), com um propósito específico e já estava fadado a acabar:

O amor jamais acaba; mas, havendo profecias, desaparecerão; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, passará... (1 Co 13:8)

Em segundo, Deus não é de confusão, mas sim de paz... (I Co 14:33). Portanto, qual seria o propósito de um brasileiro, por exemplo, levantar-se em uma igreja ou congregação onde todos falam a mesma língua (português), balbuciar algum som estranho incompreensível, esperando que outro venha a interpretar, sendo que seria muito mais sensato falar em português para que todos entendam?

É curioso notar que no N.T., as outras duas passagens que aparece a palavra confusão, retratam muito bem a realidade da igreja de Corinto, bem como muitas outras que vemos por aí...

Uns, pois, gritavam de uma forma; outros, de outra; porque a assembléia caíra em confusão. E, na sua maior parte, nem sabiam por que motivo estavam reunidos. (Atos 19:32)

Pois, onde há inveja e sentimento faccioso, aí há confusão e toda espécie de coisas ruins. (Tiago 3:16)

Deste modo, em terceiro, qual seria o motivo de se falar em línguas dentro da igreja? Se for para revelar algo novo, anátema; e se for para revelar o que já está escrito... inútil!

Não desprezo o testemunho isolado daqueles que experimentaram certo êxtase em algum momento de suas vidas e associam isto a uma manifestação espiritual. Não posso desmentir uma experiência subjetiva. Se ele sentiu, sentiu. O que não podemos aceitar é que experiências subjetivas sejam a norma para a Igreja.

O acontecimento de Atos, único na história, foi uma pequena amostra do que desfrutaremos na eternidade. Chegará o dia em que experimentaremos aquele momento em toda sua plenitude:

Depois destas coisas, vi, e eis grande multidão que ninguém podia enumerar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, em pé diante do trono e diante do Cordeiro,... e clamavam em grande voz, dizendo: Ao nosso Deus, que se assenta no trono, e ao Cordeiro, pertence a salvação. (Ap 7:9-10)

Bibliografia

COENEN, L. & BROWN, C. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. Volume II Ed. Vida Nova

LEITE, F.G. Uma Nova Identidade. Série Vida Autêntica. IBCU

MORRIS, L. I Coríntios. Introdução e comentário. Série Cultura Cristã. Ed. Mundo Cristão.

ROUANET, S.P. Língua e Filosofia: A. Problemática das línguas no mundo moderno.

Bíblia On-line. Sociedade Bíblica do Brasil.

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