Por Milton Jr.
Toda cidade tem um doido, desses que vivem pela rua e
que são conhecidos por todos, virando até lenda em alguns casos. Pois
um desses era constantemente motivo de chacota. A razão? Todos os dias
ele passava na frente de um bar onde um grupo de amigos parava para
beber. E era sempre a mesma história, cada dia um deles oferecia ao
doido uma nota de 10 reais e uma moeda de 1 real para que escolhesse. E
não é que o doido sempre escolhia a moeda, para a satisfação dos
envolvidos na história, que explodiam em risadas?! Foram mais de 2 meses
assim até que um dia um dos amigos disse ao doido: “Você é muito burro! A nota de 10 reais vale mais que a moeda de 1” – e emendou: “Você não sabe disso? Escolha a nota!!!” O doido com muita tranquilidade respondeu que não, e o que questionava perguntou o porquê, ouvindo logo a resposta: “É que se eu escolher a nota acaba a brincadeira.”
A piada é engraçada (pelo menos eu acho) e nos remete ao título do texto: quem manipula quem? Em um artigo anterior
abordei o problema de focar na mudança de comportamento e demonstrei
que isso é ineficaz se queremos ajudar nossos irmãos em seu processo de
santificação e conformidade à imagem do Redentor. O maior problema do
foco na mudança de comportamento é que acaba por formar “fariseus”, mas
há outro problema que será abordado aqui e que eu chamo de “círculo de
manipulação”.
Um caso comum
Pense
na história de Fernando e Joana. Eles são casados e ambos são membros
de uma igreja protestante há alguns anos. São engajados no trabalho da
sua comunidade e muito responsáveis em suas atribuições. Porém, em seu
lar, os conflitos só aumentavam. Joana cuidava do trabalho de casa, da
criação dos filhos e desejava ter a ajuda de Fernando em alguns afazeres
domésticos.
Entretanto, o desejo de ser
ajudada, que não é mal em si mesmo, acabou por se tornar uma exigência.
Ela começou a entender que precisava daquilo para ser feliz e como seu
marido não lhe dava a ajuda que queria ela o julgava (“ele é um péssimo
marido”) e o punia. A forma que encontrou para punir o marido era
recusar-se a ter relacionamento sexual com ele.
O
que temos aqui é um bom desejo que se tornou um péssimo senhor. A
partir do momento em que Joana pune o seu marido porque este não fez o
que ela achava que ele deveria fazer, ela demonstra que está sendo
controlada pelo seu desejo e, em termos bíblicos, isso se chama
idolatria. É fácil perceber quando um bom desejo se torna um ídolo,
basta verificar se pecamos para conseguir o que queremos ou se pecamos
porque não conseguimos o que queremos, mas, apesar da facilidade,
aqueles que estão obedecendo ao “mau senhor” geralmente não se dão
conta. Aqui entra em cena a figura do conselheiro bíblico, que deve
levar o aconselhado a enxergar essa situação.[1]
O círculo de manipulação
Ao
privar Fernando do relacionamento sexual, além de punir o marido, Joana
conseguia também manipulá-lo para fazer o que ela queria, ou seja,
ajudar nos afazeres domésticos.
Fernando, por
sua vez, satisfazia o desejo da sua esposa ajudando-a com a louça, porém
o fazia porque estava interessado mesmo era em sua satisfação sexual,
revelando também estar sendo controlado pelo seu desejo.
Ele
descobriu também como manipular sua esposa. Quando queria sexo, se
tornava o melhor marido do mundo, pois sabia que à noite seria
satisfeito. Ela, por sua vez, achava que o manipulava punindo-o com a
falta de sexo. A pergunta do título deve ser lembrada aqui: Quem está
manipulando quem?
Na verdade, o círculo de
manipulação acaba por escravizar e transformar ambos, marido e mulher,
em simples marionetes manipuladas pelo ídolo. É o mau desejo que faz com
que eles “funcionem” desta forma e mostra que eles estão servindo a um
mau senhor.
Esse círculo de manipulação pode
causar a falsa impressão de que as coisas vão bem, afinal de contas o
marido agora ajuda nos afazeres diários, e a esposa não briga mais nem
se nega a relacionar-se com o esposo.
Bastará,
porém, que o marido perca o interesse pelo sexo, que é quem está
governando sua vida, ou que a esposa entenda que “merece” um marido que
faça muito mais do que simplesmente ajudar nos afazeres domésticos para
que os conflitos retornem. A solução equivocada será novamente punição
da esposa para manipulação até que o marido entenda como virar o jogo
para conseguir o que quer da esposa. É um círculo sem fim.
Quebrando o círculo, pelo poder de Deus
Como
vimos, a abordagem comportamental gera um círculo vicioso no qual os
envolvidos se enganam achando que estão controlando o comportamento
alheio, quando na verdade estão também escravizados por seus próprios
desejos, que se tornaram “maus senhores”.
Para que Fernando e Joana resolvam de forma efetiva os conflitos, é necessário lidar com eles de forma bíblica.
Tiago
afirma em sua epístola que as guerras e contendas acontecem por causa
dos prazeres que fazem guerra em nossa carne (Tg 4.1). Ele afirma ainda
que o homem não recebe o que pede em razão de o pedido ser para esbanjar
nos prazeres da carne (4.3). Após isso acusa, então, os crentes de
serem infiéis (adúlteros na ARC). Isso quer dizer que até a oração,
quando direcionada pelos “desejos da carne”, constitui-se um ato de
infidelidade. Tiago explica isso de forma clara ao afirmar que a amizade
do mundo constitui-se uma inimizade contra Deus (4.4). Podemos resumir
isso dizendo que os nossos conflitos com o próximo têm como causa o
nosso conflito (infidelidade) com Deus, quando em vez de nos submetermos
a ele somos escravizados por nossos desejos.
Tiago
não estava falando nenhuma novidade. Seu irmão, o nosso Senhor Jesus
Cristo, já havia dito que, onde está o nosso tesouro, ali estará também o
nosso coração (Mt 6.21). Isso quer dizer que aquilo que entendermos ser
o mais importante será o que controla a nossa vida. Isso fica claro
quando observamos as palavras anteriores onde ele ordena a não ajuntar
tesouros na terra, mas a procurar ajuntar tesouros no céu.
Quando
estamos dominados por nossos desejos, estamos “fabricando” um falso
deus. Essa é a razão de Paulo afirmar aos coríntios que apesar de todas
as coisas serem lícitas, ele não se deixaria dominar por nenhuma delas
(1Co 6.12). A razão correta a nos motivar deve ser sempre a glória de
Deus, como também ensina Paulo: “Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus” (1Co 10.31).
Diante disso, se o casal quiser quebrar o “círculo de manipulação”, deverá tomar algumas atitudes:
1. Reconhecer a idolatria do coração
Fernando
e Joana devem primeiramente entender que estão sendo “movidos” e
“direcionados” não pelo Senhor, mas por seus próprios desejos, que
constituem os seus “tesouros”, e isso é idolatria. No caso de Joana o
ídolo era o “desejo de ser ajudada”, e no de Fernando, o “desejo pelo
sexo”.
Esses desejos que não são maus em si,
como já foi afirmado, tornaram-se falsos deuses. Eles fizeram falsas
promessas de alegria: “Se você tiver um marido mais prestativo será mais
feliz”; “se você tiver realização sexual será mais feliz” e para
alcançar essa alegria Fernando e Joana estavam pecando um contra o
outro, tentando “controlar” um ao outro pela manipulação.
Sem o reconhecimento de que o problema está no coração, que está adorando um falso deus, qualquer mudança será mero paliativo.
2. Confessar o pecado e rejeitar os falsos deuses
Não
basta, porém, reconhecer que estão sendo idólatras. Verificado o fato
de que estão sendo controlados por um falso deus, Fernando e Joana devem
confessar o pecado de buscar satisfação e alegria fora do Senhor. Devem
também abandonar os ídolos, dando ouvidos à voz de Deus, que ordena: “Não terás outros deuses diante de mim” (Êx 20.3). A idolatria é uma grande ofensa a Deus, mas em Cristo Jesus há redenção. João afirma que, “se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda a injustiça” (1Jo 1.9).
Além
de confessar o pecado contra o Senhor, eles devem também confessar o
pecado de tentar controlar um ao outro. Após a confissão do pecado
contra o próximo, há ainda mais a fazer.
3. Submeter-se às ordenanças do verdadeiro Senhor
A
evidência do arrependimento será uma nova disposição no relacionamento
com Deus e com o próximo. A Escritura ordena não somente parar de pecar,
mas também assumir uma nova postura. Aos colossenses Paulo explicou
isso usando a metáfora do despir e vestir. Ele ordenou aqueles irmãos a
terem uma nova postura porque haviam se “despido do velho homem” e se
“revestido do novo homem” segundo a imagem daquele que os criou (Cl
3.9-10).
Fernando e Joana deveriam, então,
obedecer à vontade de Deus em relação ao casamento. O matrimônio,
conforme estabelecido na Escritura, é uma instituição que visa à
satisfação do outro. Não poderia ser diferente, pois o apóstolo Paulo
afirma categoricamente que o amor não busca os seus próprios interesses
(1Co 13.5).
Desta forma, as ordenanças no
casamento são sempre em relação ao outro. Paulo ordena ao marido que ame
sua esposa, e à esposa que se submeta ao marido, mas não diz para um
cobrar do outro (apesar de gostarmos de cobrar do outro, mesmo que não
façamos o que nos é ordenado). Se cada cônjuge se esforça para cumprir
aquilo que lhe é exigido, há um casamento harmonioso e que glorifica a
Deus.
No caso dos pecados específicos, tratados
neste artigo, Joana deveria se relacionar sexualmente com o marido ou
abster-se disso somente de acordo com aquilo que a Palavra ensina e não
para manipulá-lo, a fim de fazer dele um marido mais prestativo.
Quando
escreveu aos Coríntios, Paulo deixou claro que o casal não deve privar
um ao outro do relacionamento sexual. A razão apresentada é que isso é
“devido” ao outro e que o corpo do marido pertence à mulher, da mesma
forma que o dela pertence ao marido. A única razão para privar o cônjuge
do relacionamento sexual seria a dedicação à oração, mas somente com
mútuo consentimento e com a orientação de novamente se ajuntarem para
que Satanás não tente por causa da incontinência (1Co 7.1-7).
Fernando,
por sua vez, também deveria colaborar com sua esposa nos afazeres
domésticos (perdoem-me, machões), mas não em troca de sexo. A motivação
correta deve ser o entendimento de que, por ser herdeiro com ela da
mesma graça de vida, precisa viver a vida comum do lar, com
discernimento e, tendo consideração para com a mulher como parte mais
frágil, tratá-la com dignidade (1Pe 3.7).
4. Entender que só há satisfação plena e verdadeira no Senhor
Por
último, ambos, Fernando e Joana, devem entender que a satisfação e
alegria verdadeiras só podem ser encontradas no Senhor. Não dependemos
de pessoas ou circunstâncias, pois temos tudo aquilo de que necessitamos
em Cristo Jesus. Paulo compreendeu muito bem isso e pôde afirmar: “Aprendi
a viver contente em toda e qualquer situação. Tanto sei estar humilhado
como também honrado; de tudo e em todas as circunstâncias, já tenho
experiência, tanto de fartura como de fome; assim de abundância como de
escassez; tudo posso naquele que me fortalece” (Fl 4.11-13).
Creio
não ser uma inferência indevida dizer também “aprendi a viver contente
em toda e qualquer situação... com um marido que me ajuda ou com um
marido que não me ajuda; tendo ou não tendo satisfação sexual”.
Entender
isso será de suma importância porque, ainda que um dos cônjuges não
mude a sua postura, o que não é incomum, não haverá motivos para
desespero, crises, brigas, pois a satisfação e a alegria estarão sendo
buscadas na fonte correta, no Redentor Jesus Cristo. “Nele o nosso coração se alegra, pois confiamos no seu santo nome” (Sl 33.21).
Conclusão
Quando
se entende que a alegria e satisfação dependem daquilo que se pode
encontrar em pessoas, seja nelas mesmas, seja naquilo que podem dar,
sempre haverá frustrações e conflitos, porque pessoas sempre frustrarão
as nossas perspectivas, principalmente porque, na maioria das vezes,
esperamos mais do que elas podem dar.
Ao invés
de manipular pessoas a fim de conseguir o que você quer, peça ao Senhor
que sonde o seu coração por meio da Palavra, arrependa-se por estar
confiando nas falsas promessas dos ídolos e volte o seu coração para o
Redentor.
Entendendo que a plenitude de alegria e
satisfação só podem ser encontradas no Senhor, teremos motivos de sobra
para nos regozijar e exultar nele, não dependeremos de circunstâncias
e, ainda que venhamos a sofrer por fazer sua vontade, podemos estar
certos de que somos bem-aventurados (1Pe 3.14).
[1] Sobre esse assunto, leia o artigo do Jônatas Abdias, “Ensaio sobre a minha cegueira: o objetivo do aconselhamento bíblico”
Fonte: Mente Cativa
Fonte: Mente Cativa
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